RAFAEL EMILIANO
@rafaelemilianoo
O Brasil se despede neste sábado (17) do apresentador de TV mais famoso de sua história. Aos 93 anos, morreu Silvio Santos, dono do SBT, do Baú da Felicidade e uma das figuras mais icônicas do país.
Todo mundo sabe que o carioca Senor Abravanel tinha no coração as cores do Fluminense, no Rio de Janeiro, e do rival Corinthians, em São Paulo. Mas pouco se fala que quase a história de Silvio Santos se misturou com a do atual presidente do São Paulo, Julio Casares.
Em 1992, a cidade de São Paulo (SP) elegeria um novo prefeito e o apresentador de TV pretendia disputar o cargo. Era favorito para a eleição e teria, veja só, Casares como vice. Mas a candidatura acabou sabotada pelo então partido da dupla, o hoje extinto PFL (Partido da Frente Liberal). A convenção que escolheu Silvio Santos como candidato terminou em briga generalizada e foi anulada pela Justiça Eleitoral.
Não fazia três anos desde a campanha relâmpago de Silvio à Presidência da República, em 1989, quando o empresário se apresentou à disputa com a corrida ao Planalto já em andamento. Foram dez dias na corrida que elegeria Fernando Collor de Mello (PRN), até que o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) barrasse a candidatura levando o apresentador ao folclore eterno das eleições brasileiras.
Mas são menos conhecidas as vezes em que o apresentador postulou não a Presidência, mas a Prefeitura paulistana: em 1988 e no pleito municipal seguinte, em 1992. Nos dois casos, esbarrou no desinteresse dos próprios correligionários em lançá-lo como candidato.
Em 1992, especificamente, o nome de Silvio por conta da corrida presidência anterior ainda estava vivo no imaginário. Por isso, soava natural que o partido a qual ele estava filiado pensasse nele para o pleito municipal que viria. Mas não foi o que aconteceu.
O apresentador dependia, na prática, de um aval dos integrantes locais da legenda, o que não era mero detalhe. O PFL era um dos grandes partidos do País, mas não contava com expressão política no Estado e na cidade de São Paulo. A sigla orbitava em torno de partidos mais influentes, como o PMDB do governador Luiz Antônio Fleury e o PDS de Paulo Maluf, pré-candidato a prefeito da capital. Para não desagradar nem um nem outro, o PFL paulistano pretendia lançar como candidato o deputado federal Arnaldo Faria de Sá – quadro influente no partido e presidente da Portuguesa, mas sem estofo para disputar um cargo no Executivo.
As pesquisas de intenção de voto atestavam: enquanto Silvio Santos estava em franca ascensão – em levantamentos do instituto Gallup, cresceu, em dois meses, 20 pontos porcentuais na pesquisa espontânea, encostando em Maluf, primeiro colocado –, Faria de Sá não chegava a 0,5% de menções. Mas o diretório municipal do PFL era comandado a mão de ferro por Arthur Alves Pinto, vice-prefeito da cidade durante a gestão Jânio Quadros, que resistiu à candidatura de Silvio Santos desde o anúncio da filiação.
O apresentador, por sua vez, não era mais um neófito em matéria de política e agia, segundo Gadelha, como se já tivesse experiência na área. À imprensa, Silvio reiterava a pré-candidatura e garantia a indicação – se não pelo PFL, dizia o empresário, pelo PTB ou pelo PDT, com os quais havia iniciado conversas com esse objetivo. Nos bastidores, Silvio Santos buscou contato com os opositores de Alves Pinto e topou com um jovem advogado da zona leste da cidade.
‘”Onde você estava? O Silvio Santos te ligou e quer falar com você”, disse a mãe a um incrédulo Julio Casares. À luz do tempo, o telefonema não parece estranho, pois Silvio e Casares trabalharam juntos por mais de uma década na televisão. Mas era abril de 1992 e, àquela altura, eles ainda não se conheciam. Conversaram por meia hora sobre a pré-campanha a prefeito e combinaram de aprofundar o tema em um encontro pessoal. No dia seguinte, lá estava Silvio Santos em Guaianazes, casualmente adentrando uma padaria do bairro e pedindo informações para chegar à casa do “Julinho”.
Julio Casares era advogado do extinto banco Bamerindus. Também era líder de um diretório local do PFL, mas se sentia enfastiado com a sigla, à qual havia se filiado anos antes, durante a campanha das Diretas Já. “Eu já estava cansado, porque o PFL era um partido, naquele momento, que fazia uma ‘garagem’ para os grandes”, contou, em entrevista ao 'O Estado de S. Paulo'.
Casares conquistou a confiança de Silvio, que o indicou, verbalmente, como vice na chapa. A aliança poderia ajudar o apresentador, ao passo em que o advogado detinha influência sobre um em cada quatro comitês do PFL da capital paulista. O quórum, por si só, não era suficiente para sustentar uma candidatura, mas poderia congregar, mediante um trabalho com as bases, mais delegados para o projeto do dono do SBT. Os delegados são os filiados com poder de voto na convenção partidária, a reunião em que é decidido o candidato de uma sigla para uma determinada eleição.
Porém, na mesma medida, crescia a resistência liderada por Alves Pinto, que se entrincheirou e cercou as alas pró-Silvio. Para agravar o quadro, em 11 de maio, Sarita, irmã de Silvio Santos, foi sequestrada ao sair de sua casa no bairro carioca da Tijuca. As 15 horas de tensão no Rio foram suficientes para paralisar, por alguns dias, a campanha a prefeito em São Paulo.
Se a filiação antecipada era um trunfo ao apresentador, o impasse perdurou até que o tempo deixasse de correr a seu favor. Cogitou-se a realização de uma prévia, um tipo de votação em que todos os filiados, não só os delegados, obtêm o direito de escolher o candidato da sigla para uma eleição.
À beira do prazo legal para o registro da candidatura, restou a medida mais drástica: a intervenção no diretório local. Na lei eleitoral, a intervenção é um dispositivo com o qual um diretório partidário perde seus poderes, que passam a ser ditados por um comitê interventor. Em 26 de maio, Julio Casares foi nomeado como presidente da comissão interventora no PFL paulistano. “Para minha surpresa, virei interventor. Você imagine, intervir em qualquer coisa. E, em um partido político, intervir é a coisa mais desastrosa que se tem”, disse o presidente do São Paulo, diante de um entrave partidário enquanto era, à época, mais novato em política que o próprio Silvio Santos.
No comando da intervenção, Casares solicitou a prestação de contas a todos os diretórios da cidade, mas nenhum delegado fora da sua esfera de influência entregou o livro caixa. O interventor alegou o não cumprimento da prestação, destituiu os delegados adversários e nomeou novos membros para os diretórios. Dessa forma, passava a viabilizar o nome de Silvio Santos em uma convenção partidária.
Os dirigentes do PFL, porém, ignoraram os decretos de Casares, permaneceram em seus postos e, à revelia da comissão interventora, marcaram uma convenção própria. O objetivo era realizá-la às pressas e escolher outro nome que não o de Silvio para ser o candidato a prefeito.
A comissão interventora pediu à Justiça para que a reunião não obtivesse validade jurídica. Foi atendida, mas os antigos dirigentes, em réplica, conquistaram uma liminar no TSE. No domingo, 31 de maio, a convenção foi realizada e elegeu Arnaldo Faria de Sá como candidato do PFL à Prefeitura. O encontro também oficializou 165 candidaturas a vereador pela sigla.
Os integrantes do PFL estavam fragmentados em dois grupos e cada uma das alas não reconhecia a legitimidade da outra. De um lado, os delegados antigos, ligados a Alves Pinto, não viam validade jurídica na intervenção; de outro, os novos delegados, ligados a Julio Casares, alegavam que eram nulas quaisquer normas baixadas pelo grupo antigo. Enquanto a Justiça não decidia quem estava certo, os prazos exigidos pela lei eleitoral se aproximavam e o partido permanecia com o destino nebuloso. O impasse foi se intensificando e a guerra nos tribunais transmutou em batalha campal.
Era 24 de junho de 1992, o último dia para os partidos apresentarem à Justiça Eleitoral seus candidatos a prefeito e vereador. Restou à comissão interventora convocar os delegados ligados ao grupo e marcar uma nova convenção. O local escolhido foi a sede social do Corinthians, no Tatuapé, em homenagem a uma das paixões de Silvio Santos. O espaço foi cedido por Marlene Matheus, esposa do lendário dirigente corintiano Vicente Matheus. A convenção prometia ser um evento completo.
Mas os problemas começaram na véspera da votação, quando Marlene, de repente, avisou aos interventores que o ginásio não estaria mais disponível. Sem o ginásio, a “festa de arromba” estava comprometida, mas ainda poderia haver reunião em um espaço menor, como o restaurante do clube. No tumulto da mudança do local da votação, notou-se o comparecimento inusitado de todo o contingente de delegados ligados a Arnaldo Faria de Sá. “Começou um clima bélico”, recordou Casares. A presença dos arnaldistas era estranha pois, na prática, não surtiria efeito. A votação era mera formalidade e a cédula a ser utilizada nem contava com algum nome que não o de Silvio Santos. Quem estava ali nem sequer pretendia votar.
Iniciados os trabalhos, o grupo pró-Faria de Sá avançou sobre a mesa em que estavam sendo recolhidos os votos e, da reação dos delegados pró-Silvio, eclodiu uma briga generalizada.
“O Arnaldo me deu um soco que nunca vi o assoalho tão de perto”, relembrou Casares. “Sofri algumas agressões, mas também briguei.”
O objetivo dos arnaldistas era apreender o chamado “livro ata”, que servia, aos olhos da lei, como autos dos trabalhos da convenção – essencial, portanto, para o registro da candidatura. “Podia voar cadeira, mas era o livro que eles queriam”, explicou. Casares. As cadeiras voaram e o livro ata, de fato, foi apreendido. Não só um livro, como dois, três e até quatro exemplares.
Passava das 23h quando a comissão interventora do PFL constatou que o livro verdadeiro estava a salvo e que a convenção, por vias tortas, havia elegido Silvio como candidato a prefeito. O prazo para o registro no Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo (TRE-SP), sediado no centro da cidade, se encerrava à meia-noite. A mil entre o Tatuapé e a Sé, chegou-se a tempo na sede do TRE-SP. O desafio parecia superado mas, vencida a batalha campal, a guerra retornaria aos tribunais.
Coube à Justiça Eleitoral decidir qual das convenções tinha validade jurídica: a de 31 de maio, que escolheu Arnaldo Faria de Sá como candidato, ou a de 24 de junho, que, em meio à pancadaria, elegeu Silvio Santos. O processo tramitou até agosto, ao fim do qual ambos os encontros foram anulados.
Diz a decisão judicial que o encontro de 31 de maio não deveria ter ocorrido pois, cinco dias antes, o PFL paulistano passou a estar sob intervenção. Com efeito, não cabia avaliar o mérito dessa intervenção, por se tratar de questão própria a cada partido, cuja governança é autônoma. Por outro lado, a convenção de 24 de junho incorreu em uma série de vícios: foi secreta, em local distinto do convocado e com participação de delegados que não tinham direito a voto.
Casares até hoje se revolta com o parecer. O presidente do Tricolor rechaça a decisão e comenta que, se os argumentos da Justiça procedessem, Arnaldo Faria de Sá teria homologado a candidatura a prefeito.
Algoz de Silvio, Alves Pinto acabou comendo o prato frio. Se a pré-campanha de Arnaldo pretendia obstruir os planos do apresentador, o preço pago foi muito além da conta. Como a Justiça Eleitoral anulou a convenção de 31 de maio, todos os 165 candidatos a vereador indicados pela sigla naquele dia tiveram seus registros cassados. Para completar, a confusão no registro das campanhas a vereador acabou motivando a debandada de todos os 12 deputados estaduais do PFL.
Foi a terceira vez em quatro anos que Silvio Santos flertou com as chances de virar político. Às campanhas de 1989 e 1992, somou-se um plano frustrado de ser candidato a prefeito de São Paulo em 1988. A tentativa foi efêmera e esbarrou no mesmo Arthur Alves Pinto, ao que se seguiu um problema de saúde nas cordas vocais que enterrou de vez a pré-campanha.
“Silvio era um estranho no ninho”, disse Julio Casares. “O ‘corporativo’ diz o seguinte: ‘Segura esse cara, porque ele vai virar a página da política’”, afirmou o presidente do São Paulo. “Ia oxigenar o mundo político. Eu acho que, nessas horas, pensam na própria sobrevivência.”
Paulo Maluf confirmou o favoritismo e, em novembro, foi eleito prefeito de São Paulo. Quase liquidou a eleição no primeiro turno, quando obteve 2.036.776 votos, 48,85% dos votos válidos. No segundo turno, ele venceu o então senador Eduardo Suplicy, do PT, por 2.805.201 votos a 2.024.957. O pleito foi polarizado entre Maluf e Suplicy, mas teve também as campanhas de Aloysio Nunes, pelo PMDB, e Fabio Feldmann, do PSDB.
0 Comentários