RAFAEL EMILIANO
Que o São Paulo tem em sua galeria de craques vários nomes que desfilaram com a camisa tricolor após entrarem para a história atuando no futebol carioca, todo mundo sabe. Mas o que poucos conhecem é que um dos atletas mais controversos do esporte brasileiro de todos os tempos por muito pouco quase integrou as fileiras ao lado de Leônidas da Silva, Gérson, Zizinho e Ponce de Léon, dentre outros...
Às vésperas do jogo mais importante de todos os tempos entre São Paulo e Botafogo, que vale uma vaga na semifinal da Copa Libertadores, o AVANTE MEU TRICOLOR resgata a história de como Heleno de Freitas, um dos maiores ídolos do time de General Severiano, quase teve o privilégio de vestir o manto são-paulino.
E como um dos cariocas radicados no então Tricolor do Canindé foi o principal responsável por impedir que esse capítulo curioso fosse escrito.
Corria o mês de dezembro de 1951 quando o telefone de um elegante sobrado no bairro da Pompeia, zona oeste paulistana tocou. Era a residência de Vicente Feola, técnico do São Paulo e que sete anos depois alcançaria a glória de comandar a Seleção Brasileira em seu primeiro título mundial, na Suécia.
Do outro lado da linha, um afoito Cícero Pompeu de Toledo, então presidente do clube tricolor (futuramente homenageado com seu nome batizando o Morumbi). Apesar do horário tardio, o cartola insistia em um encontro imediato com o técnico na sede do Canindé (sim, onde hoje é o estádio da Portuguesa). E que um táxi o apanharia.
Feola tentou adiar o encontro o quanto pode. Alegou que já se preparava para jantar e dormir. Mas Toledo não dava sinais que cederia. E a coisa parecia deveras importante para ser postergada.
Não que Feola tivesse muitos argumentos. Era o terceiro comandante do escrete são-paulino só naquele ano, cargo que ele mesmo ocupava em janeiro até que entrou em atrito com o próprio Natel e foi substituído por Leônidas da Silva, recém-aposentado, que pediu para deixar o posto alegando que não se adaptaria à função.
As coisas não iam nada boas para o lado são-paulino. O bicampeonato de 1948 e 1949 já eram glórias distantes. E o clube entrou em crise após perder o caneco de 1950 para o rival Palmeiras por diferença de um ponto.
Em 1951, com um inexperiente Leônidas no banco, a coisa começou ainda pior. O Tricolor foi lanterna do Torneio Rio-São Paulo. Houve certa troca de acusações públicas pela imprensa. O Diamante Negro falava abertamente em não estar pronto para a função. Os dirigentes o acusavam de ser muito amigo dos jogadores (afinal eram companheiros até o ano anterior). Queriam mais disciplina. E com o Paulistão já em andamento apostaram em Ariston de Oliveira, tenente reformado do Exército e da Força Pública paulista que atuava como preparador físico e teria a sua primeira oportunidade como treinador na vida.
A esperada disciplina não correspondeu. E o São Paulo amargava uma campanha pífia no Estadual, cada vez mais distante até mesmo da quarta colocada Portuguesa. Era preciso apagar o incêndio. E Feola foi convidado para retomar a função. Sem nenhuma dificuldade, já que era empregado fixo do Tricolor.
Uma das missões pedidas pelos dirigentes ao o recolocarem no cargo foi o de fazer um diagnóstico preciso dos problemas, incluindo eventuais posições carentes para que pudessem ir no mercado fazer as contratações necessárias. Teria, acima de tudo, prazo. O campeonato tinha ido para o buraco e o restante da tabela seria usada para avaliações.
Ao chegar no Canindé, o rechonchudo treinador viu do que se tratava a urgência de fato. Paulo Machado de Carvalho enviara um telegrama com a informação que atiçou Toledo e Natel: Heleno de Freitas estava de volta ao Brasil. E queria atuar na capital paulista.
LIVRE, LEVE E LOUCO
Então com 31 anos, Heleno era só uma sombra do belo homem de 1,82 metros que encantou a torcida do Botafogo pelos gols e as mulheres do então Distrito Federal pela vida boêmia e desregrada.
Nascido na mineira São João Nepomuceno chegara ao Rio em 1931 com uma história deveras diferente da habitual dos jogadores de futebol habituais (ainda mais naquela época). Filho de um comerciante rico, formou-se em direito e frequentava a alta sociedade carioca da época.
Em sete anos no Botafogo, Gilda, como era chamado pejorativamente, marcou impressionantes 233 gols em 233 partidas pelo time de General Severiano. É até hoje é o quarto maior artilheiro da história botafoguense.
O gênio considerado incontrolável, que incluía reclamações públicas de companheiros e dirigentes, já desagravada bastante, mas Heleno começou a exagerar com a vida noturna, o que tornou sua permanência no Botafogo insustentável.
Em 1949, acabou vendido ao Boca Juniors, da Argentina, por 600 mil cruzeiros, um recorde na época. Em Buenos Aires, apesar de marcar 13 gols em 17 jogos, a fraca campanha do time xeneize acabou sendo responsabilizada a ele, que forçou seu retorno ao Brasil. Bateu à porta do Botafogo, seu time do coração, mas foi recusado. Sobrou o Vasco, onde conquistaria o único título de sua carreira, o Carioca de 1949.
Novamente foi uma passagem curta. Depois de brigar com o técnico vascaíno Flávio Costa, arrumou as malas e rumou para o Junior Barranquilla e a famigerada liga pirata do Eldorado Colombiano.
Após dois anos de exílio, Heleno achou que seria o momento de voltar ao país. E aí que sua história se mistura com a do São Paulo.
LEÔNIDAS PROTESTA
Naquele dezembro de 1951, Paulo Machado de Carvalho, notório são-paulino, tinha planos de abrir a TV Record. Por isso vinha passando o mês em reuniões com o Governo Federal. Após uma dessas reuniões, ele estava em um conceituado restaurante da Glória, bairro da zona sul carioca, quando um amigo o abordou.
O misterioso personagem era integrante do Clube dos Cafajestes, espécie de grupinho de playboys do então Distrito Federal que saía pelas ruas do Rio arrumando conquistas e brigas. Um dos integrantes mais notórios era justamente Heleno.
No retorno ao Brasil, o atacante de novo procurara o Glorioso, que para se livrar dele afirmou que seu passe ainda pertencia ao Vasco. Em São Januário, Heleno até pôde treinar para recuperar a forma. Mas foi flagrado pela imprensa da época consumindo doses cavalares de lança-perfume em uma festa de grã-finos em Ipanema. Acabou dispensado.
Buscar novos ares era o que sobrava a Heleno, que foi alertado por amigos do sucesso que Leônidas da Silva fazia em terras paulistas. Já em estado avançado da carreira, o Diamante Negro se cansara do que considerava uma perseguição da imprensa, que lhe acusava das mesmas coisas de Heleno, e decidiu encarar a aventura pelo São Paulo em 1942.
Acima da identificação com o clube e a torcida tricolor, Leônidas encontrou uma cidade que caminhava a passos largos para deixar de ser uma província rural e virar a maior megalópole da América do Sul. Em dez anos, a capital paulista virou sede da única emissora de TV do continente e passou a ter o maior parque gráfico do país, relegando o Distrito Federal a um papel secundário no controle do dinheiro brasileiro.
A vontade de ter uma redenção como o ex-amigo chamou a atenção. E a presença de um homem deveras conceituado do São Paulo na Cidade Maravilhosa era a chance de tentar conseguir a transferência almejada.
No encontro com Paulo Machado, Heleno não deu sinais do desgaste físico e mental pelo vício em lança-perfume e éter, que consumia quase que diariamente. Mostrou-se um homem arrependido pelas decisões tomadas e disposto a se enquadrar para continuar fazendo o que gosta: jogar futebol. Seja como for, comoveu Paulinho, que decidiu telegrafar ao desafeto Pompeu de Toledo.
Essas foram algumas das impressões transmitidas na carta lida a Feola naquela noite no Canindé. Na pior das hipóteses, o Tricolor conquistaria algumas manchetes e holofotes com a chegada do craque problema. E o treinador teria carta branca para mandá-lo embora em caso de indisciplina.
Pouco convencido, até por conta da amizade com treinadores cariocas como Flávio Costa, Feola prometeu pensar melhor e daria a resposta no dia seguinte, após os treinamentos.
Ciente da ganância de Toledo em tentar repetir o enredo escrito com Leônidos, Feola então decidiu convidar o próprio Diamante Negro para comparecer ao Canindé naquela tarde. E, sem rodeios, o ex-jogador e treinador tricolor deu sua opinião.
Mais do que os vícios e hábitos de Heleno, Leônidas lembrou da rixa com o colega. Após sua transferência ao São Paulo, o atacante passou a debochar do Diamante Negro publicamente lhe chamando de velho, entre outros ataques.
Foi o suficiente para Toledo pegar o telefone e ligar ao hotel onde estava hospedado Paulinho. E comunicar que o São Paulo não tinha interesse.
Comovido pela situação de Heleno, Paulinho então encaixou Heleno no Santos após um pedido especial ao então técnico santista Aymoré Moreira.
Mostrando o faro certo do Tricolor, na Baixada Heleno pouco fez. Já tomado pelos problemas psiquiátricos agravados pela contração de uma sífilis não tratada e que lhe atingiu o cérebro, brigava com os companheiros e faltava a treinos. Acabou dispensado e após negociar por meses com o Flamengo, acabou mesmo indo parar no América, onde atuou uma só partida, onde foi expulso com menos de 20 minutos por dar um soco no adversário. Foi a única vez que entrou no Maracanã na vida.
Cada vez mais descontrolado, Heleno acabaria internado em um sanatório em Barbacena (MG), onde morreu em 8 de novembro de 1959, completamente debilitado.
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