RAFAEL EMILIANO
Há 50 anos o São Paulo escrevia pela primeira vez seu nome em letras garrafais na história da Copa Libertadores.
Tudo bem, o primeiro título na competição continental viria somente 18 anos depois. Mas foi em 1974 que os corações tricolores se encheram de alegria por chegarem pela primeira vez à final da competição continental.
E o sucesso internacional são-paulino parecia mesmo que ia ocorrer. Dois anos antes, logo em sua primeira disputa de Libertadores, o clube já alcançara a semifinal (à época disputada em um triangular).
Mais do que sua própria experiência, o São Paulo tinha Pedro Rocha. Principal expoente daquele elenco, o astro uruguaio já conquistara uma vezes o torneio com o Peñarol. E era referendado (com justiça) como a maior esperança de guiar o Tricolor ao título.
Com a sinceridade que lhe era peculiar, Rocha não se furtava a assumir a responsabilidade. E chamava a atenção até dos próprios companheiros para mostrar o quão difícil era o caminho até a glória.
"O jogador brasileiro não entende a responsabilidade de uma Libertadores. Ele encara um jogo da competição como um do Paulistão. Se deixa abalar com recepções ruins que encontra, iludido que todos vão se curvar pelo fato do Brasil ser tricampeão do mundo. Precisa ter maior foco mental para as dificuldades, aprender melhor a dialogar com as arbitragens", apontou o meia à revista 'Placar' daquele ano.
"No Uruguai disputar uma Libertadores é quase como disputar uma Copa do Mundo. A gente se prepara espiritualmente para a coisa. O time para uns dias, vai para a concentração e a gente só pensa e fala no torneio. O time é preparado, é instigado para esses jogos. Há uma planificação, muda-se o ambiente, tudo. A gente não entra para participar, mas para ganhar. Ganhar é importante porque projeta o time aqui e na Europa. É a chance de se viajar, de bons bichos, de dinheiro em caixa para pagar luvas e salários. É isso tudo que o jogador brasileiro ainda não sentiu, apesar da projeção que ajudou o Santos a ganhar. Queiram ou não, além do Pelé, aqueles dois títulos mundiais ajudaram muito o Santos a chegar onde chegou. O jogador brasileiro viaja tanto que a única diferença que sente entre jogar na Bolívia pela Libertadores ou em Manaus pelo Brasileiro é a língua e a comida", completou o uruguaio, à mesma publicação.
A explosão de Mirandinha no tento de empate da final (Morumbiteca) |
A COMPETIÇÃO
A Libertadores em 1974 não tinha nem o mesmo formato ou prestígio dos dias atuais. Longe disso. A prioridade naqueles tempos ainda era o Campeonato Paulista, onde o Tricolor vinha do bi em 1970 e 1971 depois de amargar um período de vacas magras por conta da concentração de foco e recursos na construção do Morumbi.
Com sua casa enfim concluída e a ordem de dar força total ao futebol, o São Paulo deslanchou naquele início de década. Além das conquistas estaduais, o clube foi vice em dois Campeonatos Brasileiros, 1971 e 1973, sendo que nesta última, quando deixou o caneco escapar para o rival Palmeiras, acabou justamente lhe classificando para a Libertadores onde sairia vice.
A principal competição de clubes da América do Sul tinha um regulamento deveras diferente naqueles tempos. Apenas 20 equipes a disputavam, sendo duas de cada país. Os confrontos eram regionalizados, com os representantes de dois dos dez países filiados à Conmebol ocupando o mesmo grupo. E só o líder da chave passava às semifinais, onde se juntavam ao atual campeão e formavam dois triangulares, em que os primeiros colocados faziam a decisão.
O São Paulo caiu no Grupo 2, ao lado do Palmeiras e dos bolivianos Jorge Wilstermann e Deportivo Municipal. E não teve muitas dificuldades para se classificar. Venceu, por exemplo, os dois duelos com o rival local (incluindo um 2 a 1 em pleno Parque Antártica).
Como fato curioso desta primeira fase, fica a goleada por 5 a 0 sobre o Wilstermann em 8 de maio, quando Mirandinha marcou um dos gols e ficou sabendo no gramado do Morumbi que estava convocado para a disputa da Copa do Mundo que aconteceria meses depois, na Alemanha. O centroavante fazia parte da lista inicial do técnico Zagallo, mas tinha sido dispensado dos treinos de preparação que já aconteciam.
Por falar em Mundial, justamente por conta da competição, a Conmebol decidiu paralisar a Libertadores por conta do torneio jogado em terras alemãs. A competição só voltaria em setembro, com o São Paulo desta vez integrando o Grupo 2 da semifinal, ao lado de Millionarios (Colômbia) e Defensor (Peru).
E, como esperado, dado o peso das camisas envolvidas, o Tricolor atropelou os adversários. Passou invicto e com direito a duas goleadas sobre os adversários nas partidas disputadas no Morumbi. Vaga na final assegurada.
A DECISÃO E A TORCIDA RIVAL
Se teve vida relativamente fácil na semifinal, a promessa para a decisão era de dificuldade extrema. O adversário seria o temido Independiente, da Argentina, então tricampeão naquela ocasião e detentor do caneco, que entrara na semifinal e passara pelo grupo da morte, ao lado do conterrâneo Huracán e do uruguaio Peñarol.
A cidade de São Paulo literalmente parou para a decisão, em especial para a primeira partida da final, que seria disputada em melhor de três jogos e estava agendada para o dia 12 de outubro (a data só viria a se tornar feriado sete anos depois, em 1981).
Antes, contudo, duas polêmicas.
A primeira foi a marcação do jogo para o Pacaembu. Sim, o velho Estádio Municipal. Isso porque a diretoria do São Paulo decidiu reformar o gramado do Morumbi após os duelos da semifinal da Libertadores. E o prazo para liberação do palco atrasou, deixando o Tricolor sem casa para a decisão.
A situação levou o técnico José Poy a reclamar fortemente na imprensa. "Faltou um cuidado maior sim. É uma decisão e perdemos assim a chance de atuar onde estamos mais ambientados. Se não tem condições, por que então nos deixam treinar", indagou o argentino, à 'Folha de S. Paulo'.
O próprio Poy protagonizou a outra polêmica, hoje insólita. O treinador resolveu escalar um time reserva no jogo anterior à decisão, pelo Campeonato Paulista. O problema é que se tratava de um clássico contra o Corinthians para encerrar o primeiro turno. O rival, há 21 anos na fila, precisava da vitória para passar a Ponte Preta, terminar em primeiro e se classificar à final.
No dia 9 de outubro, o rival da zona leste cumpriu seu papel, venceu o mistão tricolor por 1 a 0 e passou a Macaca na classificação, vencendo o primeiro turno para a alegria de sua torcida e a fúria de todo mundo, que atacou Poy pela decisão de abdicar da força máxima no Estadual para privilegiar a Libertadores.
O clima de cobrança com o treinador argentino, contudo, durou pouco. Isso porque dois dias antes do jogo, enquanto o Independiente desembarcava na capital paulista, um clima nacionalista bateu no futebol paulista, fazendo com que os rivais declarassem torcida ao São Paulo. Motivos para isso não faltava, segundo eles: o Brasil não vencia a Libertadores há 11 anos (a última vez tinha sido com o Santos, em 1963) e o gosto na boca estava amargo com a eliminação para a Holanda pela Seleção no Mundial da Alemanha.
Até aí, tudo bem, não fosse o fato dos presidentes dos quatro outros times paulistas considerados grandes naquele ano tinham conclamado suas respectivas torcidas a não só apoiarem o São Paulo, como também a fazê-lo no Pacaembu.
Duvida? Pois veja os relatos transcritos pela 'Folha de S. Paulo' no dia do jogo, que foram dados um dia antes em programa especial levado ao ar pela 'TV Gazeta'.
Vasco Fae, presidente do Santos: Eu queria convidar… ou melhor, incentivar que a torcida alvinegra, a torcida peixeira, no dia de hoje, já que na festa de despedida de Pelé, no Pacaembu, nós recebemos todas as torcidas… Por isso, hoje, vamos retribuir, levando o nosso apoio ao Tricolor do Morumbi, contra o Independiente. O São Paulo Futebol Clube é o Brasil na Libertadores. Por isso, a torcida deve comparecer, hoje, ao estádio. O São Paulo precisa de sua torcida.
Vicente Matheus, presidente do Corinthians: Eu faço um apelo à torcida corintiana e aos esportistas em geral. Hoje à tarde, vamos jogar contra o Botafogo [de Ribeirão Preto, pela primeira rodada do segundo turno do Campeonato Paulista, no Parque São Jorge], portanto, esse jogo termina às [18 horas], mais ou menos. Por isso, faço um apelo à torcida Camisa 12, aos gaviões da fiel, a todos os corintianos, que, depois do jogo, se incorporem, com suas bandeiras, para prestigiar o nosso querido amigo São Paulo Futebol Clube, porque temos muitas amizades na diretoria do Tricolor. No campo, somos rivais e lutamos de ombro a ombro, mas sempre com lealdade. Portanto, torcida corintiana, hoje, o São Paulo, que já é um nome lindo, mais do que isso, é Brasil e precisa do apoio dos corintianos. Pois eu também estarei lá, presente, para torcer com aquela galhardia, aquele entusiasmo, conforme torcemos na última quarta-feira [quando o clube conquistou o “título” do primeiro turno do Paulistão, após ganhar do mistão são-paulino].
Paschoal Walter Byron Giuliano, presidente do Palmeiras: À grande torcida do Palmeiras, peço que levem todas as bandeiras do nosso clube ao Pacaembu. Peço apoio total ao São Paulo Futebol Clube, pois o jogo de hoje é uma festa para o futebol brasileiro. Espero que, nesse jogo contra o Independiente, os palmeirenses compareçam em massa ao estádio, torcendo para o São Paulo. Vão ao estádio. Torçam pelo nosso irmão. O futebol precisa de você, torcedor palmeirense. Leve o seu apoio, leve o seu abraço, à torcida do São Paulo.
Osvaldo Teixeira Duarte, presidente da Portuguesa: Nós queremos dirigir a palavra aos nossos associados, da nossa queria Portuguesa de Desportos. A palavra de hoje é uma palavra de ordem. Nós queremos todos os nossos torcedores, na noite de hoje, nesse jogo extraordinário que a cidade aguarda. Estará em jogo o prestígio do futebol brasileiro. O prestígio que nós precisamos recuperar. O prestígio que nós precisamos consolidar. E fica aqui a nossa palavra, o nosso convite, para que você, torcedor luso, compareça, de forma maciça — de forma maciça, repito — , ao Estádio do Pacaembu, na noite de hoje. Precisamos prestigiar o São Paulo Futebol Clube. É necessário levar o nosso aplauso e o nosso calor àqueles que vão defender realmente o futebol brasileiro. Torcedor luso, compareça ao Pacaembu, às 21 horas, pois o São Paulo precisa do seu apoio e o futebol brasileiro, também.
Ainda havia depoimentos de Mário Frugiuele, presidente em exercício da Federação Paulista de Futebol e ex-presidente do Palmeiras, e de Henri Aidar, então presidente do São Paulo e pai de Carlos Miguel: “O São Paulo Futebol Clube faz questão de adentrar em campo hoje e prestar uma homenagem aos nossos co-irmãos, pela forma como eles se dirigiram à torcida.”
Não se sabe quantos dos 51.436 pagantes eram torcedores de outros times, mas havia bandeiras dos outros clubes grandes nas arquibancadas, algo impensável hoje. Parece pouco provável que muitos corintianos tenham ido ao Pacaembu depois de comparecer ao jogo de seu time no Parque São Jorge, pois a partida em questão terminou aos quinze minutos do segundo tempo, quando houve uma invasão de campo que fez o árbitro Sílvio Acácio Silveira encerrar o jogo. Foi neste jogo em que Rivellino acabaria suspenso por cinco jogos após chutar o bandeirinha Mário Molina.
O São Paulo ganhou o primeiro jogo por 2 a 1 e precisava apenas de um empate no segundo jogo, em Avellaneda. Mas o Independiente venceu a segunda partida por 2 a 0, forçando uma terceira, em campo neutro (Santiago do Chile). Essa decisão ficaria marcada pelo pênalti perdido por Zé Carlos Serrão, e o Independiente levaria a terceira de suas quatro taças seguidas, ao vencer por 1 a 0.
Ou seja, que rivais mais pés-frios nós tínhamos! ;) Mas, ao menos, eles não ficavam conclamando a fria execução de personagens de Walt Disney.
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